Maura Regina Petruski

UM OLHAR ALÉM DA MORTE: O ENSINO DE HISTÓRIA A PARTIR DO ESPAÇO CEMITERIAL

Promover uma reflexão a respeito de elementos que constituem o ambiente escolar é uma prática que já foi realizada por inúmeros profissionais de diferentes áreas do conhecimento e em distintas temporalidades. Contudo, essa é uma temática que não se esgota por si só, nem, tampouco, pode-se colocar um ponto final em suas discussões nem considerá-la finalizada, haja vista que esse é um espaço formativo que exige análises permanente não só por parte dos envolvidos diretamente com o sistema educacional, mas pela coletividade em suas diversas instâncias, além de que, as constantes mudanças que estão acontecendo no mundo, atingem o indivíduo de maneira abrangente, chegando também à escola.

Essa constatação parte do princípio de que o processo formal de ensino desenvolvido na escola, não é algo estático e fechado, que pode ser concebido de maneira única, no qual um encaminhamento de trabalho é selado em si mesmo, que não pode ser renovado e reorganizado. Muito pelo contrário, essa ação acontece num ambiente múltiplo e ambivalente onde os professores se deparam com crianças, adolescentes e jovens de diferentes contextos sociais, formativos e culturais, o que faz com que, cotidianamente, esses profissionais se defrontem com enfrentamentos díspares que, em muitos casos, devem ser vencidos naquele momento, em função de que não podem ser deixados para trás nem, tampouco, passados despercebidos, pois podem ser ponto de partida para mudanças.

Também, e necessário salientar que a educação de um indivíduo perpassa pela ação de diferentes formas e agentes (pais, mídia, amigos, redes sociais, etc.), ultrapassando as paredes de uma sala de aula, fazendo com que quando o aluno chegue a escola, já traga consigo uma bagagem de conhecimento, que é complementada com saberes específicos estabelecidos por uma legislação aplicada a partir de práticas formativas, sendo essa instituição, uma dentre os demais veículos formadores do elemento humano. Paulo Freire “ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua produção ou a sua construção” (2001, p.25).

Assim, nesse espaço de aquisição do saber, pensar, planejar, refletir são os primeiros passos presentes na trajetória que visa alcançar o aluno, tarefa realizada pelos professores a cada tema que vai ser analisado e explorado no decorrer do ano. Para tanto, ao abordar alguns assuntos, é necessário vencer resistências quanto a sua interpretação, visto que alguns preconceitos e verdades sobre ele já foram construídas, fazendo com que essas se tornassem enraizadas socialmente, dificultando algumas vezes a atuação do profissional em sua explanação, mas isso não deve ser visto como barreira e argumento para deixá-lo de lado, devendo-se apostar na mudança e renovação para seu desenvolvimento.

Um novo objeto
Partindo dessa ideia de rompimento de barreiras apresentadas acima, ao mesmo tempo em que se propõe possibilidades de novas abordagens, metodologias e análises para o ensino, apresenta-se uma reflexão a respeito da utilização do espaço do cemitério como ferramenta didática para as aulas de História, visto que, dentro desse limite temos um lugar amplo, rico e privilegiado para compreender e estabelecer diferentes padrões culturais edificados socialmente e, como nos lembra o antropólogo Damatta, fazemos parte de uma sociedade na qual “os vivos têm relações permanentes com os mortos” (1997, p. 146), muito embora, essa referência nem sempre seja admitida e percebida de maneira clara e objetiva entre os indivíduos e nuvens pairem e encubram esse aspecto da vida humana.

Vale lembrar que a etimologia da palavra cemitério vem do latim coemiterium que significa “lugar onde se dorme” e se origina do grego koimetérion, que relaciona-se a “quarto de dormir”, fazendo referência a colocações como “a última morada” e ao “descanso eterno”.

Por intermédio da discussão dessa temática, há a possibilidade de abrir caminho para se romper com a abstração do que podemos chamar de a ‘cegueira da morte’, classificação designada por Edgar Morin, que afirma que “fazemos de conta que a morte não existe, pois a vida cotidiana é pouco marcada pela morte” (1997, p.63).

Fábio Steyer escrevendo sobre essa linha de raciocínio, mencionou que,

“O homem ao se deparar com a finitude da vida reage basicamente de duas maneiras distintas: com a negação ou a aceitação da morte terrena. A reação mais comum é a de negação do fato, pela qual a família do morto expressa seus sentimentos de revolta com o fim da vida através de inscrições, fotografias e objetos colocados nos túmulos que relembram a vida terrena. A aceitação da morte terrena aparece através de demonstrações de fé e de homenagens e saudações à vida do defunto” (2000, p. 74).

Dessa forma, nada melhor do que promover discussões nessa frente no ambiente escolar pois podem ser pautadas e sustentadas por diferentes pressupostos teóricos e metodológicos, abrindo um leque de desdobramentos e possibilidades de análise entre os quais estão a vida, a morte, a arte, a cultura.

Além de que, não se pode esquecer que esse assunto remete a subjetividade e mexe com laços familiares, afetivos e imaginário das pessoas, promovendo a sua sensibilização desencadeada pelo processo de contemplação desse espaço e por aspectos que ele está envolto.

Ao optar pelo cemitério como tema de reflexão no espaço de aprendizagem, parte-se do pressuposto que o campo santo, enquanto uma edificação que integra o patrimônio cultural está repleto de símbolos e significados, o qual é formado por objetos estéticos e imagéticos, que codificam sentimentos e práticas de religiosidade, também evidenciam a fé ou, apenas, registram a morte.

Tais elementos nele presentes, fazem uma ponte e evidenciam um diálogo com a sociedade, pois transitam com vários aspectos que formam um indivíduo, e a sua utilização como objeto de análise, possibilita trilhar o aprendizado por vários caminhos na medida em que é repleto de significações.

Vale lembrar que, independentemente do tamanho da cidade e do número de indivíduos que nela habitam, todas possuem um lugar destinado a enterrar os mortos e a eles prestar homenagens, refletindo a relação que se estabelece com esse momento da condição humana que, a partir de seu estudo, possibilita revelar o passado social e cultural dessa localidade que está guardada em seu intramuros e que nem sempre é percebida, mas que pode ser revelada por meio da leitura do seu acervo fúnebre.

Nessa perspectiva, Michel Foucault escreveu que,

“Exemplificarei com a estranha heterotopia que é o cemitério. Um cemitério é, em absoluto, um lugar diverso dos espaços culturais comuns. É, porém, um espaço intimamente relacionado com todos os outros sítios da cidade ou estado ou sociedade, etc., uma vez que cada indivíduo e cada família tem familiares no cemitério. Na cultura ocidental o cemitério sempre existiu, apesar de ter atravessado mudanças radicais” (2001, p. 417).

A respeito das mudanças mencionadas pelo autor, vale mencionar que ao longo da história da humanidade as formas de tratamento dada a esse espaço sofreu variações significativas quanto a sua estruturação, havendo interferência de representantes do poder público, civil e religioso. A exemplo disso temos a criação dos ‘cemitérios parques’, nos quais não se faz presente a construção de jazigos e alegorias de morte evidenciando outra perspectiva de finitude.

Outro aspecto ainda a se considerar em relação a esse tema, é que normalmente está afastado da escola no que se refere a questão curricular, e que vem à tona informalmente quando catástrofes, fatalidades ou pessoas consideradas ilustres partem do convívio dos demais e o acontecimento é levado ao ambiente de ensino numa forma de comentário, curiosidade ou choque.

Também, com a explanação desse assunto, é possível encaminhar à discussão para a valorização e reflexão da própria vida, pensar nas relações estabelecidas na perspectiva do ‘eu’ e o ‘outro’, do ‘indivíduo’ e ‘sociedade’, entre outros aspectos.

E, em relação aos conteúdos presentes no livro didático que faz interface com o cemitério, comenta-se que ele traz informações superficiais sobre a temática ‘morte’, abordando algumas referências relacionadas ao passamento de grandes personagens ou como imputação de penas não havendo a problematização do assunto.

Com o desenvolvimento desse estudo também se têm uma perspectiva reveladora, a partir da manifestação dos alunos ao exporem o que pensam e conhecem sobre o assunto, suas ideias, ansiedades e dúvidas relacionadas a esse local e aos elementos a ele ligados. Além de que, pode-se construir e diagnosticar o perfil desse grupo, haja vista que, normalmente, se desconhece o que os educandos pensam sobre esse aspecto, mesmo sabendo que é inerente aos indivíduos, pois em muitas famílias ele é visto tabu ou pouco se fala a respeito.

Nessa linha de raciocínio, Rigo afirma que,

“a dificuldade de aceitar um tema considerado “pesado” para ser abordado por adolescentes em plena vitalidade corporal e mental está associada à falta de informações sobre a contribuição histórica, artística, cultural e religiosa que o campo santo pode oferecer e também à ideia supersticiosa de que tratar sobre a morte pode acabar atraindo-a” (2012, p.109).

Ademais, com a consecução dessa proposta de ação, que pode-se se desenvolver de maneira aberta, tanto professor quanto alunos tem a possibilidade de sugerir questões, levantar problemas e fazer encaminhamentos para tratar o material de estudo de forma coletiva, fazendo com que os alunos se sintam sujeitos mais ativos no processo de ensino.

Além de que, o ensino de história precisa ir adiante percorrendo o trajeto que transforma a visão fragmentada dos eventos para uma visão mais processual, e é somente dessa forma que o educando estará apto a ver como a história está inserida em sua vida.

Nessa linha de pensamento Karnal afirma que

“quanto mais o aluno sentir a história como algo próximo dele, mais terá vontade de interagir com ela, não como uma coisa externa, distante, mas como uma prática que ele se sentirá qualificado e inclinado a exercer” (2008, p. 28).

Uma visita ao cemitério pode compor uma das estratégias de análise do tema, isso aproximará os alunos com o conteúdo, pois oportunizará a observação dos elementos que estão silenciados, além de que, quebra o paradigma de que o ensino é feito somente na sala de aula, mostrando que a História está presente em todos os cantos e de diferentes formas, ao mesmo tempo evidenciar que essa área possui uma dinâmica em sua análise que corrobora para a construção do conhecimento.

Com essa ação, há a possibilidade da realização da desmitificação desse lugar e novos saberes são formados, gerando um novo olhar para esse recinto e as relações que a partir dele se estabelecem. Além de que, o educando vai perceber que é necessário se fazer perguntas aos objetos para conhecê-lo, ultrapassando o que está sendo apresentado visivelmente, convidando ao exercício da imaginação e estimulando ao conhecimento, já que é um espaço provocativo.

Diante disso, o espaço cemiterial pode ser enquadrado na perspectiva da continuidade e não somente da finitude, ao mesmo tempo em que sua potencialidade como lugar de ensino-aprendizagem vai sendo revelada a cada passo que se dá e coisas novas se descobre.

Referências
Maura Regina Petruski é professora adjunta do departamento de História da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG).

DAMATA, Roberto. Carnavais, Malandros e Heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro. Rio de Janeiro: ROCCO, 1997.

FOUCAULT, Michel. Outros Espaços. In: (Org.:). MOTTA, Manoel Barros. Michel Foucault. Estética: Literatura e Pintura, Música e Cinema. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: sabres necessários à prática educativa. 17ª ed. São Paulo:Editora Paz e Terra. 2001.

KARNAL, Leandro. História na sala de aula: conceitos, práticas e propostas. São Paulo: Contexto, 2008.

MORIN, E. Os sete saberes necessários à educação do futuro. São Paulo: Cortez, 2001.

RIGO, Kate Fabiani. Cemitérios: um espaço religioso e educativo. Anais do Congresso Internacional da Faculdade EST. São Leopoldo: EST, v.1, 2012,

STEYER, Fábio. Representações e Manifestações antropológicas da morte em alguns cemitérios do Rio Grande do Sul. In: BELLOMO, Harry R.(org.) Cemitérios do Rio Grande do Sul: arte, sociedade, ideologia. Porto Alegre: EDIPUCS, 2000.

6 comentários:

  1. Congratulo-a pelo artigo.
    Conforme comentei no texto de Anna Luiza Pereira, deste mesmo Simpósio e que de algum modo dialoga com seu artigo, ocorreu semana passada no Museu Histórico Nacional, o I Colóquio de Arqueologia Funerária e como ouvinte pude perceber consonâncias com os vossos trabalhos.
    Durante as palestras, em especial "Arquitetura cemiterial: uma tipologia classificatória para o estudo de necrópoles oitocentistas" de Clarissa Grassi, nos é colocado de que maneira as diversas arquiteturas tumulares dos cemitérios estão de acordo e evoluem conforme os contexto histórico estético e urbanístico das cidades em que estão localizadas. Na fala "Grave Goods – even in death, things matter" de Dra. Melanie Giles, é colocado como os objetos que eram colocados nos enterramentos podem ser carregados de simbolismos e nos ajudam a explicar determinados contextos conforme você menciona.
    Acredito que essas e outras comunicações deste evento possam lhe ser uteis para aprofundar seu trabalho.
    Um questionamento que pode ser feito é de que maneira levar estudantes para estudar história num cemitério diante da violências que muitas famílias vivem hoje em dia, principalmente nas periferias das grandes metrópoles, tendo que lidar com a morte diariamente em suas comunidades e cotidianos. Tema delicado mas que com certeza merece ser trabalhado.

    Lucas Mascarenhas Levitan

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  2. Olá Lucas, obrigada por ler meu texto e pelas indicações. Essa é uma perspectiva que está crescendo enquanto objeto de estudo e a partir disso é que se vai desmitificar os elementos que envolvem essa parte da existência humana. Maura

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  3. Olá Maura, Boa Tarde! Parabéns pelo texto e pela temática abordada. Sem dúvida o cemitério nos dá inúmeras possibilidades de aproximar os nossos alunos da História, mostrando que ela está mais próxima do que se podem imaginar. Com isso, gostaria de saber que experiências você tem feito nesse sentido e quais os resultados?
    Obrigado.
    Alexsandro do Nascimento Macedo

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    1. Olá Alexsandro.Uma última experiência foi com alunos do ensino superior quando trabalhamos com a influência egípcia na arquitetura cemiterial no contexto da egiptomania. Analisamos 3 túmulos que foram construídos no início do século XX que possuem traços da arte egípcia. Neles inúmeros símbolos que remetem a apropriação foram explorados compreendendo a influência dessa cultura na sociedade ocidental. Maura

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  4. Arnaldo Lucas Pires Junior12 de abril de 2018 às 19:08

    Primeiramente gostaria de te parabenizar pelo texto, não só pela escolha do tema, mas também pela forma com a qual as influências teóricas foram mobilizadas para dar substância a sua proposta.

    Minha questão não tem o objetivo de apontar qualquer lacuna em seu trabalho, que realmente considero muito bom, mas apenas de indicar ou discutir a não utilização do conceito de "lugar de memória", conforme expresso por Pierre Nora. Acho que o conceito adéqua-se completamente ao espaço cemiterial, que guarda, em sua ambiguidade, essa aura simbólica e a dimensão material de lugar onde reside o "passado", ainda que este seja um passado morto. Nesse sentido, gostaria de te perguntar se a não utilização do Nora foi uma escolha consciente e, caso afirmativo, o porquê dela.

    Att.
    Arnaldo Lucas Pires Junior

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    1. Ola Arnaldo. Sim,porque esse espaço abriga diferentes formas de de memória, não somente de na pessoa que já se foi mas elementos que podem ser problematizados nessa perspectiva que podem ser historicizados. Maura

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