Jeferson Rodrigo da Silva

O ESPAÇO SOCIAL DOS PROFESSORES NA CONSTRUÇÃO DO CADERNO DE EXPECTATIVAS DE APRENDIZAGEM PARA A DISCIPLINA ESCOLAR HISTÓRIA NO PARANÁ

Este texto tem a intenção de problematizar a construção do ‘Caderno de expectativas de aprendizagem’ para a disciplinas escolar História, publicado em maio de 2012 pela Secretaria de Educação do Paraná, com base em documentos relacionados à sua construção e alguns referenciais teóricos que abordam as reformas curriculares [GOODSON, 2002; 2013; POPKEWITZ, 2001]. De maneira geral, o documentos e define como uma contribuição para o avanço da qualidade do ensino estabelecendo parâmetros comuns em relação aos conteúdos que devem ser trabalhados em todo o estado [PARANÁ, 2012]. Por conta dessa relação entre qualidade e parâmetros comuns, abordaremos o material na perspectiva de ser um produto da racionalidade técnica que acredita ser possível prescrever objetivos mensuráveis visando a eficácia da escolarização na forma de receituário [GOODSON, 2002, p.48-49].

Historicamente,prescrever objetivos mínimos de aprendizagem sob a forma de conteúdos e temas se tornou algo bastante recorrente nas reformas curriculares dos estados brasileiros nas últimas décadas [OLIVEIRA; FREITAS, 2012]. No caso do Paraná,o caderno foi interpretado como um tipo de currículo escrito muito limitado que, inevitavelmente,era comparado às ‘Diretrizes curriculares orientadoras da educação básica’ [PARANÁ, 2008]pelo fato de estas serem consideradas, entre muitos profissionais da educação no estado,referências importantes de orientação para o trabalho docente.Essa questão não será abordada no texto, mas para situar melhor o leitor, as diretrizes foram construídas entre 2003 e 2009, como parte de um movimento de reforma educacional desencadeado na gestão de Roberto Requião [2003-2010], enquanto o caderno foi elaborado logo no primeiro ano da gestão Beto Richa [2011-2014].

Estas informações se tornam pertinentes porque o caderno definiu um receituário de conteúdos mínimos seguindo a lógica dos descritores das avaliações de larga escala, como o SAEB por exemplo, instituindo uma objetividade maior para o que deve ser ensinado se compararmos aos temas apresentados nos anexos das diretrizes [PARANÁ, 2008]. Além disso,a construção do caderno,inserida nas ações de reformada nova gestão, gerou uma sensação de “rompimento” com os processos anteriores. Neste sentido, a ideia de que o caderno pudesse ser um substituto das diretrizes tomou corpo em alguns textos que se propuseram a refletir sobre o material [APP, 2011; GURSKI, 2015; CALDAS, 2016].

O ‘Caderno de expectativas de aprendizagem’ é um documento digital de 104 páginas com listas de objetivos na forma de frases numeradas que indicam, para todas as disciplinas, quais conteúdos deveriam ser trabalhados pelos professores. O principal argumento para a existência desse caderno era a necessidade de continuar a implementação das diretrizes curriculares por meio de padronização dos conteúdos e temas que os professores deveriam trabalhar [PARANÁ, 2012, p.5].
Esse argumento se sustentava em um discurso de melhoria da qualidade da educação no estado que poderia transformá-la na melhor do Brasil [PARANÁ, 2011b]. Entretanto, a busca da melhoria era atrelada a planos de metas semestrais que prescreviam objetivos claros pautados no tom de urgência para a modernização do sistema educacional com vistas a formação de sujeitos críticos, participativos, transformadores da realidade e capazes de enfrentar os desafios da contemporaneidade, algo que, na visão dos gestores, atrelava-se à elevação do IDEB [PSDB, 2011, p.114]. Assim, a mesma lógica de receituário utilizada para justificar a pertinência do caderno aparecia no estabelecimento das metas que todos deveriam cumprir nos prazos determinados.

Foram publicados quatro planos de meta entre os anos de 2011 e 2012 com ações direcionadas ao aprimoramento da avaliação que previam a elaboração do caderno e a sua utilização como referência para a construção de um sistema de avaliação da aprendizagem em larga escala de abrangência estadual. Referências ao caderno aparecem pela primeira vez no plano de metas do 1° semestre de 2011 que afirmava a necessidade de “[...] estabelecer critérios de avaliação, verificação e potencial de aprendizagem, para o processo de ensinar e aprender, dos alunos da rede estadual” [PARANÁ, 2011b,p.5]. Nesse momento, o material era identificado como‘Caderno critérios de avaliação’ indicando que sua construção seria feita de maneira coletiva envolvendo, inclusive, os próprios professores no processo.

De modo geral, o caderno foi elaborado inicialmente por técnicos do Departamento de Educação Básica da Secretaria de Educação apenas como uma lista de expectativas numeradas, seguindo a divisão de conteúdos estruturantes e básicos presentes nas diretrizes estaduais[PARANÁ, 2008].Este é, inclusive, um dos argumentos usados no caderno para justificar a continuidade na implementação desse documento curricular.No caso da disciplina escolar História, essa elaboração foi feita com base nos temas de cada ano escolar, o que permitiu a elaboração de expectativas organizadas, não apenas pela cronologia clássica da História centrada continente europeu, mas também orientadas por assuntos que perpassavam essa divisão dos períodos históricos como, por exemplo, a diversidade cultural, as relações entre campo e cidade, o trabalho, a formação dos estados nacionais e das instituições sociais [PARANÁ, 2008; 2012] passando a sensação de propor uma abordagem sobre eixos temáticos.

Como parte do conjunto de metas, estas listas foram submetidas à “validação” dos professores em um evento de formação continuada ocorrido na semana pedagógica de julho de 2011. Neste momento, foram entregues as listas iniciais de expectativas, já identificadas como ‘Caderno de expectativas de aprendizagem’ e uma ficha de sugestões que limitava as contribuições dos docentes à adição, modificação, substituição ou supressão de alguma expectativa.

A mensagem de apresentação do documento que acompanhou aquela primeira versão sintetizava os propósitos do caderno ressaltando a responsabilidade que os professores teriam naquele evento de formação continuada. Entre os objetivos centrais estavam: aprimorar os processos avaliativos em sala, continuar a implementação das diretrizes curriculares estaduais, padronizar as seleções de conteúdo com base em um direito de aprendizagem do aluno, normalizar as práticas docentes, qualificar o processo educativo e servir de referência para a elaboração de um sistema estadual de avaliação [PARANÁ, 2011a] que depois viria a se tornar o‘Sistema de avaliação da educação básica do Paraná’, mais conhecido como SAEP.

Existe um forte apelo às atribuições docentes no convite para a participação coletiva. Evidentemente, essa estratégia era uma forma de inserir os professores no debate, mas de maneira que a sua capacidade de ação estivesse condicionada a pequenas incursões sobre as frases elaboradas anteriormente pelos técnicos.Apesar disso, o tempo de reflexão curto e as limitadas possibilidades de sugerir mudanças não contradizem o elevado índice de adesão ao processo que, se interpretado sob o enfoque da profissionalização docente, na relação entre poder e conhecimento [POPKEWITZ, 2001], implica em questionarmos a relevância daqueles compromissos, amplamente disseminados,em relação à subjetividade dos professores.

Considerando a análise de alguns materiais produzidos nesse momento de construção do caderno para a disciplina escolar História, o aparecimento desse material gerou certa insatisfação que, de maneira geral, foi explicitada na forma de textos anexados às fichas de sugestão preenchidas de acordo com os roteiros.Entendemos, porém, que as condições de intervenção e a própria ideia de profissionalização docente que se configura nesses processos contribuíram para que,nos manifestos, os professores de História tomassem a existência do caderno como algo dado [GOODSON, 2002, p.24]. É neste sentido que interpretamos o medo de uma possível substituição das diretrizes estaduais;as solicitações de reordenamento dos descritores de maneira cronológica, seguindo a organização dos livros didáticos; a explicitação de problemas técnicos que dificultariam a efetivação da proposta como a falta de materiais de apoio; a insuficiência de carga horária da disciplina e a necessidade de reduzir o número de alunos em sala.

Considerando o pensamento de Ivor Goodson, suspeitamos que essas evidências sejam decorrentes de uma perspectiva mistificada de currículo,historicamente assentada na subjetividade dos professores[GOODSON, 2002, p.27-28]que constitui os sentidos da atuação nos espaços sociais da reforma destinados a eles [POPKEWITZ, 2001] como, por exemplo, aquele em que se prioriza a discussão sobre a aprendizagem e as boas práticas de ensino. Se pudermos considerar essa hipótese válida, então o ‘Caderno de expectativas de aprendizagem’ tem uma importância maior do que apenas prescrever expectativas para avaliações externas, mas também de qualificaras possibilidades de ação do professor para a discussão dos processos de aprendizagem específicos das disciplinas escolares.

A operacionalização aproveitou, de maneira oportuna, o modelo de formação continuada utilizado em anos anteriores acionando uma estrutura burocrática semelhante àquela usada na construção das diretrizes.Talvez isso explique o sucesso dessa etapa, realizada em um dia, com o envolvimento significativo de professores e técnicos. Para a disciplina escolar História, foram obtidas 785 sugestões de todo o estado que depois foram selecionadas e sistematizadas pelos técnicos da SEED para utilização na última etapa de construção realizada no mês de outubro.

Mais uma vez, a estruturação do ensino em disciplinas escolares contribuiu muito para esse processo ocorrer da forma como relatamos porque permitiu que os aspectos centrais da reforma fossem transformados em discussões fragmentadas pelas especificidades da História escolar e internalizadas nos problemas técnicos das escolas [GOODSON, 2013, p.30-31].

Os manifestos dos professores impactaram as ações daquela gestão que, no mínimo, vinham a público reafirmar a pertinência do material ou utilizavam recursos discursivos para minimizar as resistências e construir consensos.Esse é um dos motivos que justifica a mudança de ‘critérios de avaliação’ para ‘expectativas de aprendizagem’ considerando que esta adequação ocorreu internamente em algum momento antes do evento de formação ocorrido em julho. Outro aspecto se refere à mobilização do sindicato de professores que solicitou maiores esclarecimentos dos gestores acerca da construção de um documento que, em seu entendimento, estaria alterando – ou até mesmo substituindo – os pressupostos das diretrizes curriculares produzidas em um longo processo de participação coletiva [APP, 2011]. A resposta dos gestores naquele momento esteve pautada no conjunto de argumentos da mensagem entregue junto à primeira versão das expectativas na semana pedagógica de julho [PARANÁ, 2011c], explicitando a convicção de que as proposições apresentadas até aquele momento seriam suficientes para reverter o clima de ruptura e conseguir a estabilidade necessária para a oficialização do documento.

Para finalizar, é importante percebermos que o caderno de expectativas está inserido em um movimento de reforma local com grande influência de movimentos mundiais para a mudança. Podemos perceber essas forças, por exemplo, na necessidade de associar qualidade aos índices de avaliações externas. Considerando as análises de Ivor Goodson [2013, p.25], entendemos que esses processos se inserem em uma onda de reformas que busca a transformação das escolas em motores de eficiência sob as exigências de organismos multilaterais como o Banco Mundial que estabeleceu, nas cláusulas de um contrato de empréstimo firmado com o estado[PARANÁ, 2013], a necessidade de realizar avaliações externas com base em listas de descritores padronizados. Também é importante observarmos como a definição de expectativas acompanha os movimentos de reforma nacional que vieram, posteriormente, a definir os direitos de aprendizagem da base nacional comum curricular [MELLO, 2015].

Embora a disciplina escolar História não fosse objeto das avaliações externas, a forma como se desdobraram as ações não isentaram essa disciplina, e nem os seus professores, dos processos globais materializados nas estratégias desses governantes. Por isso a relevância de refletirmos sobre esse documento curricular e o espaço social que foi destinado ao professor de História na sua construção.

Referências
Jeferson Rodrigo da Silva é doutorando no Programa de Pós-Graduação em Educação da UNICAMP, sob a orientação da professora Drª. Maria do Carmo Martins, e professor de História na rede pública de ensino do estado do Paraná.

APP. App e Seed discutem semana pedagógica. 02 ago. 2011. Disponível em: http://appsindicato.org.br/?p=8870%2F&print=print. Acesso em: 09mar. 2018.

CALDAS, Luiz Américo Menezes. Análise das diretrizes curriculares da educação básica do Paraná: Ciências (2004-2008). 2016, 146 f. Dissertação (mestrado em Educação) – UEPG, Ponta Grossa, 2016.

GOODSON, Ivor. Currículo: teoria e história. Petrópolis: Vozes, 2002.

______. As políticas de currículo e de escolarização. Petrópolis: Vozes, 2013.

GURSKI, Luciano de Lacerda. Licenciatura em educação física e os documentos oficiais da educação básica do estado do Paraná (2008-2012): aproximações e distanciamentos para o ensino de lutas nas escolas. 2015, 182 f. Dissertação (mestrado em Educação) – UEPG, Ponta Grossa, 2015.

MELLO, Paulo Eduardo Dias de. Base nacional comum, direitos e objetivos de aprendizagem e desenvolvimento e o IDEB: nexos, contextos, rastros e o lugar do professor. Boletim do laboratório de ensino de História – UEL. Londrina, n.76-77, nov. /dez. 2015.

OLIVEIRA, Margarida Dias de; FREITAS, Itamar. Currículos de História e expectativas de aprendizagem para os anos finais do ensino fundamental no Brasil (2007-2012). Revista História hoje, v.1, n.1, p. 269-304, 2012.

PARANÁ. Diretrizes curriculares da educação básica: História. Curitiba: SEED, 2008.

______. Caderno de expectativas de aprendizagem: versão para a semana pedagógica de julho de 2011. Curitiba: SEED, 2011a.

______. Plano de metas: 1° semestre de 2011. Curitiba: SEED, 2011b.

______. Esclarecimentos sobre o caderno de expectativas de aprendizagem. 03 ago. 2011c. Disponível em: http://www.educacao.pr.gov.br/modules/noticias/article.php?storyid=2668. Acesso em: 09mar. 2018.

______. Caderno de expectativas de aprendizagem. Curitiba: SEED, 2012.

______. Contrato de empréstimo n°8201 – BR e contrato de garantia do projeto multissetorial para o desenvolvimento do Paraná – Banco Mundial. Curitiba: SEPL, 2013.

POPKEWITZ, Thomas. Lutando em defesa da alma: a política do ensino e a construção do professor. Porto Alegre: Artmed, 2001.

PSDB. Beto Richa: metas de governo (2011-2014). Curitiba, 2011.

3 comentários:

  1. Em relação aos conteúdos que foram debatidos dentro dos "Caderno de expectativas de aprendizagem", algum ponto, foi levantado temas voltados para a história local do estado do Pará? faço essa pergunta pela carência dos livros didáticos que não trazem conteúdos voltados a esse aspectos como a historia das cidades e dos estado. Trabalhar a historiografia local, poderia, ao seu ver, promover a construção de sentimento de pertencimento dos alunos a suas localidade?
    ROBERTO RAMON QUEIROZ DE ASSIS

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    1. Obrigado pela questão. Vou por partes. Efetivamente, não existiram debates acerca dos conteúdos do caderno. Os temas foram dados de antemão e pouca margem de discussão foi permitida aos professores. A História regional é tema recorrente desde 2001 quando foi criada uma lei estadual que estipulava a necessidade de trabalharmos com temas locais em sala. Por conta disso, existem expectativas no caderno que atravessam conteúdos locais e enfatizar a pertinência deles se tornou algo bastante recorrente. Sobre os livros, precisamos pensar de maneira mais ampla. Na história do PNLD, existem momentos em que são ofertados diversos livros regionais entre as opções de escolha - me recordo de algumas obras temáticas para o Paraná em algumas seleções - entretanto, existe também uma diminuição dessa oferta em pnlds mais recentes, o que me leva a supor um forte predomínio dos livros com seleções clássicas de conteúdos entre as opções ofertadas porque são mais fáceis de se vender. Trabalhar a historiografia local contribui com o desenvolvimento da capacidade reflexiva quando pressupomos que ser local e ser próximo a realidade do aluno são compatíveis. Eu tenho dúvidas sobre essa ideia porque, ao que me parece, os currículos regionais estão cada vez mais alinhados com processos globais de formação da identidade. Isso poderia ser pensado com relação à importância dada ao regional e aos temas clássicos. O regional, nesse caso, acabaria funcionando como um meio de intensificar a importância de uma identidade globalizada, mais do que o pertencimento à localidade. Podemos ver, por exemplo, o uso dessa perspectiva na afirmação de que a bncc reservaria uma parte do currículo para as especificidades de cada região. Mesmo que se trate desse regional, seguramente ele funcionaria como facilitador da adequação aos elementos globais do currículo e não para o fortalecimento de uma identidade regional.

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